Para Tasha Hacker, uma autoproclamada reles cruzeirista, a regata Clipper Round the World foi como passar uma temporada em um treinamento militar de elite
“Todo mundo ao convés, imediatamente!”
Minutos antes a adriça do Spinnacker se rompeu, fazendo com que a vela voasse para dentro d’água, tal qual toalha molhada. Nesse momento me encontro no salão principal e estou me preparando para o pior. Nosso barco está velejando em condições extremas há horas, enfrentando ventos de 50 nós e vagalhões de 20 metros de altura, enquanto o nosso Spinnacker nos proporcionava velocidades que excediam os 30 nós.
Estou aterrorizada na hora em que somos chamados para o centro das ações, mas pronta para agir.
Nas duas últimas semanas, desde que partimos da Cidade do Cabo, na África do Sul, em direção à Austrália, sono tem sido artigo de luxo entre os tripulantes do Henry Lloyd, uma das 12 máquinas de regatas de 70 pés que disputa a “Clipper Round the World”. E se existe uma coisa que a tripulação — um misto de novatos e velejadores experientes —está aprendendo é que não há descanso abaixo do paralelo 40, que não por acaso é conhecido como “The Roaring 40s”(“os 40 que rugem”, numa tradução livre).
Mesmo dentro do veleiro, onde normalmente nos sentimos seguros, os ruídos gerados pelos ventos e ondas dos Mares do Sul, em seu eterno dueto com os gritos apavorados de quem está no convés, lembram momentos pré-apocalípticos. Rapidamente, visto meu colete salva-vidas e o cabo de segurança e me preparo para ajudar no cabo de guerra que virou a ação de recuperar o Spinnacker que foi para dentro do mar. Nesse instante, minha cabeça se enche de dúvidas: “Isso é insano. O que estou fazendo aqui?”
Minha experiência anterior se limita a cinco anos de velejadas de fim de semana em Nova York e um cruzeiro até o Caribe a bordo de nosso Catalina 34. E, no momento, com uma tripulação de mais 20, estou ajudando a resgatar um Spinnacker de dentro do oceano em condições totalmente adversas. Por um momento fiquei imaginando se o arrependimento tem essa cara.
Volta ao mundo?
“Candidatei-me para a Regata Clipper”, contou-me com um certo cuidado meu marido, Ryan Horsnail, enquanto apreciava uma taça de vinho — e, discretamente, observava a minha reação. Estávamos no cockpit do nosso Catalina 34, vendo o pôr do sol em Manhasset Bay, NY.
“O que é isso?”, perguntei. “É uma regata que dá a volta ao mundo, em barcos minimalistas e que começa em…”
“Volta ao mundo?”, interrompi abruptamente.
“É, mas a gente não precisa correr a regata inteira. Pode-se participar de apenas uma ou duas pernas, que é o que pretendo.”
Minha cabeça começou a ficar a mil por hora. Será que ele está falando daquelas velejadas malucas que a gente vê no YouTube? Como a Volvo Ocean Race, em que os tripulantes usam capacetes e sobem o mastro para desenroscar velas durante tempestades homéricas? Isso é muito maluco!
“Quando é essa regata?”, pergunto, tentando disfarçar o pânico.
“Começa em Londres em setembro de 2013 e termina no verão seguinte. Gostaria de participar das pernas um e três. A terceira é nos Mares do Sul e, pelo que sei, é a mais ‘animal’ delas.”
“Mas, e as Bahamas?” Por mais de um ano estávamos planejando essa viagem e subitamente começo a desconfiar que Ryan quer sugerir uma velejada até Londres em nosso Catalina 34.
“A Clipper começa daqui a mais de um ano, dá tempo de ir até as Bahamas antes disso e voltar para o treino.”
“Vai ter um treino? Que tipo de treino?”
“Claro que vai ter um treino. Cerca de 30% dos tripulantes que participam da regata não têm experiência anterior nenhuma”, diz Ryan.
E então estou intrigada. Eles arregimentam pessoas que não têm a menor noção de como velejar, treinam e mandam dar a volta ao mundo em máquinas de regata?
Desde que compramos Hideaway, há cerca de cinco anos, sempre confiei a nobre arte da vela ao Ryan. E aqui estamos, a poucas semanas de zarpar em direção ao Caribe. Definitivamente, acho que um pouco de treinamento me cairia bem.
“Você acha que o treinamento para fazer a Clipper seria útil também em cruzeiro?”, pergunto. “Quer dizer, de qualquer forma me faria ser uma velejadora melhor, não acha?”
Ryan olha para mim com interesse. “Claro, né? Quer dizer, vamos sair em condições climáticas que jamais espero encontrar no nosso veleiro. E, se aprendermos a velejar nessas condições, teremos muito mais confiança para velejar qualquer barco. Por quê? Você está pensando em ir também?”
De repente me vejo esfregando nervosamente as mãos. E recordando as primeiras vezes em que fomos velejar. Morria de medo cada vez que o barco adernava mais do que 15 graus, achando que ia tombar. Lembro de quão pouco eu sabia e até onde já cheguei.
Correr regatas em mar aberto é totalmente diferente de realizar pequenos cruzeiros costeiros. No entanto, consigo vislumbrar quem serei no futuro: a pessoa que volta de uma aventura e está pronta para comandar o próprio veleiro.
“Você acha que eu consigo? Quer dizer, você é um velejador experiente e eu não.”
Ryan sorri. “Você quer, não quer? É claro que é capaz; quando terminarmos vai capitanear o Hideaway!”
Vamos treinar!
Podemos velejar em barcos separados?”, pergunto, torcendo para que não haja decepção na resposta de Ryan. “É porque acho que vou aprender mais, se você não estiver o tempo todo para me ajudar”. Ryan sorri: “Claro!”
“Como faço para me inscrever?”, pergunto, torcendo sinceramente para não me arrepender.
“Para o chão, e pague cinco flexões de braço!”, grita o comandante do nosso veleiro. Percebo que acabei de cometer o erro primário de passar correndo no deck a sotavento, o que pode ser muito perigoso, especialmente em alto-mar.
“Foi mal”, respondo, soltando o cabo do running da catraca. “Posso pagar no final do treino?”
“Só se você quiser pagar cinquenta, em vez de cinco. Pague cinco já!” Me jogo no chão, xingando a mim mesma pelo tempo perdido, enquanto faço as cinco flexões o mais rápido que posso. Em seguida, volto para minha posição na catraca do runner, com os músculos tesos e sentindo meu coração pulsando forte no peito. Nosso veleiro está competindo contra o do Ryan em uma disputa para ver quem troca a buja primeiro e assim ver o que aprendemos nessa primeira semana de treinamento para a Clipper. E nesse momento estou extremamente focada. É vencer ou vencer.
“Preparar para o bordo!”, grita o timoneiro. “Preparando runner!”, respondo, recolhendo o cabo do outro lado, trocando de mão e torcendo ao máximo meu tronco para compensar pelo tempo perdido. “Runner pronto!”
“Bordoooo.” Conforme a manobra vai sendo executada, sons de cabos zunindo pelo deck e velas panejando preenchem o ar para então serem substituídos pelos ruídos característicos das catracas dando suporte para os ajustes. Giro o manicaca da minha catraca até o cabo gemer sob pressão e por um instante procuro com o olhar o barco do Ryan. A equipe dele ainda está agachada no convés, velas panejando e nenhum sinal de estarem perto de completar a manobra.
“Yes!”, gritamos em nosso time enquanto nos deslocamos para o guarda-mancebos de barlavento com nosso barco passando tão próximo do deles que fica impossível eles não notarem os sorrisos da vitória em nossos rostos. Ryan está me encarando do barco dele com um olhar de “nem pense em tirar sarro de mim! Afinal, fui eu quem te ensinou a velejar…”
Quero ir para casa!
Os turnos são de quatro horas, as refeições e o sono curto ditam o ritmo dos nossos dias a bordo. E quando somos privados de um dos dois, as emoções vêm à flor da pele, manifestando-se com gritos, choros e fugidas para o banheiro.
Essa é a minha lembrança da semana final de treino. A equipe do Henry Lloyd está tão cansada que esboça pouca reação quando finalmente retornamos a Britain’s Gosport Marina às 4h da manhã, depois de cinco dias fora. Deveríamos estar celebrando a nossa graduação, mas em vez disso adotamos um solene silêncio. Em nossas mentes cada um se pergunta se a Clipper será mesmo a aventura que tanto imaginamos.
Eu mesma estou pensando seriamente sobre isso. Se estou nesse estado lamentável após apenas cinco dias no Canal da Mancha, como será navegar três semanas nos perigosos Mares do Sul? Lembro o que me motivou a correr essa regata em primeiro lugar: treinar, velejar e superar meus medos.
E, por incrível que pareça, não são esses os meus maiores desafios. Falta de conforto, de sono, fazer xixi a 45 graus, cozinhar para 20, não tomar banho, conflitos de personalidade, beliches com goteiras, sacos de velas como sofás, falta de espaço e, principalmente, falta de privacidade: são esses os fatores que estão me levando à loucura.
Pensei ter feito um bom preparo psicológico para o desafio extremo de singrar os oceanos a bordo de um veleiro de 70 pés. O que não tinha previsto, e que é muito mais difícil, é viver um mês num espaço confinado com mais 20 pessoas.
Em meio à ação
Meus companheiros já estão em plena ação no convés e, antes que a dúvida e o medo influenciem a minha consciência, subo para onde está a ação e agarro um pedaço do Spinnacker amerissado, que naquele momento está tentando catapultar metade da tripulação na água.
Esqueço a minha própria segurança. Só o que me preocupa é que, a cada minuto em que arrastamos a vela pela água, nossos concorrentes estão se aproximando, para nos tirar do pódio. Daí puxo com ainda mais força, até que todo o pano ensopado esteja a bordo. E aí começa o trabalho pesado: substituímos a adriça rompida, trazemos um novo Spinnacker para o convés enquanto o outro é guardado. Cada uma dessas manobras nos custa tempo precioso.
Faltando apenas 60 milhas para a linha de chegada, o Henry Lloyd está entre os três primeiros, tentando a sua primeira vitória. E estamos tão perto da costa que imagino poder até sentir o cheiro da terra firme.
Mais tarde estou ao timão. Estamos com vento de popa há exatas 4 horas, o Spinnacker puxando forte; meu foco é manter o rumo, o que faço mantendo certa estrela na visada entre o mastro e a cruzeta. Dessa forma consigo a combinação ideal entre rumo, inclinação e velocidade. Estou fitando os céus com as mãos tão firmes na roda de leme como se a minha vida dependesse disso. Através do canto dos olhos percebo o restante do time concentrado em suas respectivas funções.
No princípio da alvorada, conseguimos ver o logotipo do barco exatamente à nossa frente: é o Great Britain. O radar revela que ele se encontra a 1,7 milhas à nossa frente. Ou seja, apenas 1,7 milhas nos separam do primeiro lugar no pódio.
Dois tripulantes estão nas catraias principais, prontos para a ação. Quando o trimmer dá o comando, seus braços movem-se em perfeita sincronia. É como observar o mecanismo de um relógio: o barco balança, o Spinnacker paneja, o trimmer grita, os meninos da catraca pedalam… somos o exemplo da disciplina e da determinação.
Nosso comandante, Eric, anuncia que cobrimos 15 milhas na última hora. “Se conseguirmos manter o ritmo, vamos quebrar o recorde de velocidade de singradura do PSP Logistics”, sabendo que isso vai impactar-me em especial, pois é o veleiro em que está meu marido.
Mas todos sabemos que não temos mais 24 horas para quebrar o recorde de 311 milhas. Essa regata termina no máximo em 6h. “Foco”, repito para mim mesma.
Meus olhos estão vermelhos pela falta de sono e excesso de cafeína, e os músculos dos ombros me lembrando de sua existência através de uma incessante dor. Combato a dor viajando para o passado, lembrando de uma experiência similar durante a maratona da montanha de Andirondack, em que tive que suportar uma dor excruciante nos ligamentos isquiotibiais. “Você já suportou dores piores por mais tempo”, digo para mim mesma, “continua aí e não reclama…”
Assim que o sol apareceu no horizonte, Eric comenta, enquanto vê sua equipe trabalhando em sincronia: “Não importa o que aconteça no final, quero que vocês se lembrem desse momento. É algo do que podem se orgulhar.” Não sei se estávamos cansados demais, maravilhados ou simplesmente focados em nossas tarefas, o fato é que ninguém teceu nenhum comentário. Só movemos levemente a cabeça em sinal de concordância.
“Pedalem!”, alguém grita e os braços se movem. “Parou!”. Chegamos ainda mais perto do Great Britain mas, em seguida, eles se distanciam de novo. Chegamos perto, e eles se afastam. Ficamos nessa dança até que o Henry Lloyd cruza a linha de chegada em segundo lugar, 27 minutos atrás do Great Britain.
21 dias, 5.000 milhas e a regata de nossas vidas se resume a esses 27 minutos.
Quando se chega tão perto, 27 minutos podem te assombrar. O que seria se aquela adriça não tivesse rompido? E se a gente tivesse recolhido o Spinnacker mais rapidamente? E se todas aquelas trocas de vela tivessem sido perfeitas?
Acima dessas perguntas, no entanto, penso nas pequenas vitórias nas últimas semanas, enquanto cruzamos a linha. Como, por exemplo, quebrar o recorde de velocidade da difícil Clipper, alcançando 33,9 nós ou bater outros dez barcos idênticos. Lembro-me também da dor, por exemplo, quando um cabo do Spinnacker voou em cheio no meu rosto ou quando passei uma hora no púlpito vomitando, agarrada na buja.
Penso também se essas vitórias teriam o mesmo gosto, se tudo tivesse sido fácil. Lembro das primeiras conversas com Ryan sobre a Regata Clipper, as dúvidas e medos em função da pouca experiência. E, de repente, vejo que consegui ser aquela a que me propus. Sou a mulher que imaginava me tornar quando pela primeira vez pensei em participar da Clipper. Me tornei aquela que adquiriu a confiança para tocar seu próprio barco sozinha, depois de enfrentar os Mares do Sul e seus ventos com força de furacão.
Não sou apenas uma sobrevivente da Clipper; eu cresci! E agora, que estou em terra firme e em segurança, refletindo sobre a experiência mais desafiadora da minha vida, posso afirmar sem medo que não me arrependo nem um pouco.
Arrependimento não vem da dor, desconforto ou de levar seu corpo ao limite. Vem de não saber quais são suas reais capacidades, de nunca tentar descobrir onde estão.
Agora que conquistei a famigerada Clipper Round the World e depois de ter me apaixonado por regatas oceânicas, a pergunta deixou de ser “Será que vou me arrepender?” para ser “E aí, qual é a próxima ?”
*Texto: Tasha Hacker
Fonte: Revista Mariner Brasil