Os saveiros tiveram séculos de reinado nas águas do litoral nordestino brasileiro, principalmente na Bahia. Mas toda a importância histórica dessas embarcações ameaça naufragar junto com os poucos exemplares que ainda restam. Você já ouviu falar de saveiros? Talvez, para a maioria dos leitores, a primeira imagem que vem à mente é de uma picape de pequeno porte que anda pelas ruas brasileiras, correto? Mas saibam que o nome dado a esse veículo remete às embarcações a vela construídas há séculos e que tiveram extrema importância para a história do nosso país. Antes das estradas cortarem o interior do Brasil, antes da proclamação da nossa independência, os saveiros já transportavam cerâmica, frutas, farinha, açúcar, munição, peixes, móveis, animais e pessoas entre as ilhas, portos e praias da Bahia.
Embarcações no Brasil Colonial
Em 1549, Salvador foi nomeada a primeira capital brasileira. Pouco tempo depois, a região se desenvolveu na construção de embarcações graças à fartura de madeira encontrada aqui.
Ao longo dos séculos, vários tipos de embarcações navegavam nas águas do litoral baiano. Havia as naus (de maior porte), as corvetas (que defendiam a costa), as sumacas (que faziam rotas transatlânticas), as barcas (que transportavam açúcar para os outros portos do Brasil), as canoas e jangadas (bastante parecidas com as atuais) e, por fim, os saveiros.
Considerado o mais brasileiro dos barcos, não se sabe uma data certa de sua criação, mas há registros de que desde o início do século 18 já havia muitos exemplares nas águas. Há dúvidas também quanto a sua origem: alguns estudiosos dizem que seria de tradição mediterrânea, enquanto outros entendem que os barcos vieram da Índia, ou ainda mais antigos, do Egito Antigo ou China milenar. O certo é que eles passaram por Portugal, onde sofreram adaptações, e foram usados na pesca do savel, peixe encontrado no mar do Norte. Daí veio o nome “Saveiro”.
O desenho é baseado nos caravelões da costa, uma versão reduzida das caravelas. Não seria exagero colocar os saveiros entre os principais cartões postais da Bahia. O Mercado Modelo recebia dezenas dessas embarcações em sua rampa, comprovando sua importância comercial para o desenvolvimento da região. Todo transporte de pessoas e mercadorias entre Salvador e as cidades do Recôncavo Baiano era feito por eles.
A exploração do petróleo, a partir da década de 50, decretou o lento e triste fim dos saveiros. A implantação de redes de estradas asfaltadas e pontes que ligam as ilhas ao continente possibilitou o transporte mais rápido e de menor custo. Também a aparição de transportes mais modernos, como o ferry-boat, acelerou o desaparecimento dos saveiros da paisagem baiana.
Os caminhões, além de mais rápidos, deixavam as mercadorias na porta do comprador. Já o saveiro dependia, às vezes, de outro frete que as levasse do porto ao seu destino.
À beira da extinção
Parece que a rica história não foi suficiente para a preservação dos saveiros na região baiana. Dos quase 2 mil exemplares nos tempos áureos, hoje restam menos de vinte em atividade, lutando diariamente para serem notados.
Com a falta de manutenção, os locais nos quais os barcos ficavam atracados transformaram-se em verdadeiros cemitérios de saveiros. Alguns foram adaptados para barcos de recreio por iatistas do litoral sul, dando origem às escunas. Outros sobrevivem precariamente, transportando alimentos e até material de construção.
Os saveiristas e canoeiros são marinheiros natos. Vivem no mar desde crianças e se dedicam por toda a vida à profissão. Eles detêm o conhecimento da fabricação e manutenção dos saveiros. No entanto, as novas gerações parecem não se interessar pelo assunto e, se nada for feito, os saberes morrerão com seus mestres.
Para não deixar naufragar uma parte do Brasil, a Associação Viva Saveiro luta para manter viva a chama dessas embarcações através da preservação dos modelos existentes e restauro de saveiros, com o objetivo de devolvê-lo ao seu habitat natural: o mar.
A associação é formada por velejadores e admiradores que desenvolvem atividades para transmitir a história dos barcos, além de resgatar a autoestima de saveiristas, pescadores, artesãos e comerciantes que, de alguma forma, já utilizaram saveiros como um sustento. Ao longo do ano, eles organizam eventos como exposições de arte, ações de saúde, passeios turísticos e educativos, além de participar de licitações públicas com o objetivo de captar recursos para promover a recuperação de todos os exemplares que restam.
A união entre órgãos governamentais e entidades civis, com apoio de mídias, Marinha do Brasil, IPHAN, IPAC, Secretaria de Turismo da Bahia, entre outros, vem conseguindo, aos poucos, resgatar esse pedaço da história do país.
Uma obra de arte
Durante séculos, os responsáveis pela construção dos saveiros não utilizavam projetos complexos ou plantas com inúmeros cálculos como a maioria dos engenheiros navais. A única base de pesquisa era o graminho, um pedaço de madeira com as medidas essenciais do barco. Esse instrumento de carpintaria foi trazido da Índia pelos portugueses e garantia marcação e corte precisos. Nessa pequena tábua, riscada em várias direções, estão registradas medidas, tamanhos, espessuras, curvas etc., sempre em proporções. Mas o trabalho de construir não era nada fácil. Somente um artista era capaz de fazê-lo.
Graminho
O arquiteto baiano Lev Smarcevski foi pesquisar as origens do graminho e reuniu um rico material de pesquisa no livro “Graminho, a Alma do Saveiro”, de 1996. Entre as principais curiosidades, descobriu que o objeto pode ter nascido na construção civil há mais de 5 mil anos.
Sendo uma espécie de planta resumida, o graminho traz mais de trinta parâmetros. Alguns são:
– Largura máxima
Precisa ser igual a 1/3 do resultado obtido para o comprimento. Ou seja: a medida maior do graminho multiplicada por 50 e dividida por três.
– Comprimento
Deve ter 50 vezes a medida maior do graminho, o que dá cerca de 20 metros. Com tábuas de medidas diferentes variava-se o tamanho dos barcos, mas a proporção era mantida.
– Quilha
A quilha deve ter 75% do comprimento e o graminho corresponde, precisamente, a um corte transversal da madeira usada para a peça.
– Mastros
Para barcos de carga, com velas quadrangulares, os mastros devem ter comprimento igual ao do barco e/ou da quilha, dependendo do número de mastros.
– Cobertura
As tábuas do casco, convés e cabine devem ter largura igual a 1/4 do graminho.
– Costelas
A espessura da madeira usada para fazer as costelas (cavernas) do barco e as vigas que atravessam o convés equivale à metade do graminho.
– Reforços
As tábuas que correm da popa à proa, logo abaixo das bordas do convés, devem ter largura igual a 3/4 do graminho.
– Capacidade de carga
O comprimento do barco deveria ser dividido por dois para indicar a quantidade de carga que ele poderia carregar, em tonéis.
– Velas
A altura das quadrangulares deve ser 30% menor que a do mastro. O lado superior teria a metade desse comprimento e o de baixo, metade mais um terço.
E de pensar que os saveiros já serviram de inspiração e foram tema de canções de Dorival Caymmi, fotografados por Pierre Verger e escritos nas linhas de Jorge Amado. Vida longa aos saveiros da Bahia!
Por Leandro Portes
Fotos Nilton Souza
Saiba mais:
Associação Viva Saveiro
R. Alm. Marques de Leão 319 sl. 210 – Barra
CEP 40.140-230 – Salvador – BA
www.vivasaveiro.org
info@vivasaveiro.org
www.facebook.com/VivaSaveiro
twitter.com/vivasaveiro
Fonte: Revista Boat Shopping
http://www.boatshopping.com.br/boat/boat-shopping/bahia-de-todos-os-saveiros/